Olhos de rímel
Era alta madrugada. Ela chegou, girou a chave na fechadura, abriu a porta, e ele estava lá, esperando. Não sabia o que lhe dizer? Ele tampouco perguntou: olhava-a tirando os sapatos altos, ali mesmo no corredor de entrada, cambaleante e visivelmente embriagada.
Tinha-a os olhos borrados de rímel, como se houvesse chorado; também pudesse ser em consequência das lágrimas de contentamento – satisfeita dos prazeres das orgias – ou mesmo efeito do sereno da madrugada.
Fosse qual fosse à causa, nem se dera ao dever de retocar a pintura. Também podia dizer que o borrado do rímel era efeito das lágrimas de saudades dele; coisa, que tampouco ele acreditaria, não, naquelas circunstâncias.
O certo era que nem passou pela sua cabeça encontrá-lo ali, àquelas horas da noite. Pensou que estivesse longe.
Sentou-se ao chão. Olhava-o de baixo à cima – ele em pé à sua frente, com a arma empunhada –, aguardando sabe-se lá o quê? Afinal, o que ela podia dizer? Tampouco adiantava se desculpar – o horário, o jeito de se vestir, a calcinha exposta, o ar impregnado de perfume, a fedentina da fumaça de cigarro, falavam por ela.
As lágrimas lhe rolavam pelo rosto. E já não importava o rímel.
Aliás, nada mais importava. Os olhos dele mirando-lhe os fartos seios sobrando no decote do vestido preto – vestido que ele mesmo lhe dera de aniversário. Agora ele reparava nos brincos do noivado e no colar de ouro, que ela usava naquela hora; que eram também presentes dele.
Só não ganhara dele, os filhos. Que ela mesma nunca quisera – não nascera para ter filhos; preferia a conjunção carnal, todas as noites. E tivesse uma sobra de tempo, no decorrer do dia também – a audaz e insaciável ninfomania com a qual nascera; sem culpa disso.
Lembrou-se de quando se casaram; passaram-se meses de convivência harmoniosa e ele precisou viajar. Na primeira vez, ela suportou as necessidades; nas vezes seguintes, viu que não era mulher do lar. E teve a primeira experiência extraconjugal; diga-se, depois de casada.
Agora, torcia que ele viajasse, sempre. Ele, já um tanto desconfiado.
Numa tardezinha, ela o levou à estação do trem, beijou-lhe a boca e desejou-lhe boa-viagem. Ele entrou por um lado do vagão e antes que o trem partisse saiu pelo outro, tendo permanecido escondido até o anoitecer, de caso pensado.
Voltou pra casa, quando ela já havia saído e ficou ali esperando ela voltar. O punhal à mão, que agora lhe tremia; ansiada.
Estava literalmente nua. Ele a olhava fixamente, sem nada dizer, os olhos rasos d’água. Quis levantar-se sozinha, mas não agüentou. Ele arriou ao chão o punhal, recolheu-a carinhosamente nos braços e a levou pra cama, onde fizeram sexo; apenas sexo, naquela noite!
Em seguida, ele tirou do bolso uma moeda de um real, e depositou, pra ela, sobre a mesinha de cabeceira da cama. E foi dormir noutro quarto.
Agora era assim: durante as noites, vez em quando, ia pra cama dela. E todas as vezes que fazia sexo com ela, depositava sobre a mesinha de cabeceira, a moeda de um real. Sem nada falar.
Até que um dia, indignada, ela deixou as jóias que ganhara dele sobre a mesinha, o vestido preto, carregou os olhos no rímel e não mais voltou.
Passaram-se os dias, as semanas.
Saudoso, ele foi à zona de baixo meretrício, onde ela trabalhava. E fizeram sexo. Ele perguntou o preço e ela disse: Cinquenta reais. Sem contestar, ele enfiou a mão no bolso e pagou.
Foi aí que percebeu o quanto lhe devia: das vezes anteriores, que fizeram sexo. E que ele, inocente, pensava que fosse amor.
E o livro, quando sai?
ResponderExcluirParabéns. Gosto muito de seus textos.
Belvedere