“Azar nas cartas, sorte no amor”
Passada meia-noite, o toque dos dedos de alguém soou na porta. Após um sepulcro silêncio – Quem é? – perguntou o senhorio, um dos presentes à mesa de pôquer, já assustado, apressado – ameaçando recolher as cartas – podia ser a polícia: quem sabe alguém denunciara a habitual jogatina, das sextas-feiras no seu apê?
Uma voz fraca, cansada – de uma mulher jovem, parecia –, anunciou-se lá fora e logo foi identificada por outro componente da mesa, que franziu os cenhos, fez careta, levou as mãos à cabeça, descabelou-se, cerrou os punhos e socou a mesa, em silêncio, já não se importando se os demais vissem seu jogo: não era lá boa coisa mesmo, satirizou-se: “azar nas cartas, sorte no amor”.
Levantou-se, sem querer se levantar, podia estar bem longe dali, noutro lado do mundo, num transatlântico, no Senegal ou numa selva, admirando a natureza, mas estava ali, e aquele apartamento só possuía uma porta, sair pela janela não dava – era o sexto andar – e a recém-chegada de certeza ouvira a sua voz, ele pedindo mais três cartas para ver se melhorava o seu minguado par-de-dois, de pé-de-galinha.
Preferiu que fosse a polícia, e fosse preso naquela hora; vã ilusão!
Abriu a porta e gelou o olhar na lividez de um rosto feminino imóvel mal sobressaindo à meia-luz do corredor, aquele par de olhos pretos suplicantes, o branco dos olhos mais branco que um iceberg e os lábios dela – sempre rosados e torneados de batom, lembrou-se – agora, lívidos, sem cor nenhuma – Estou sangrando, ela disse, antes de desmaiar em seus braços.
Deu um passo à frente fechando a porta atrás de si, apertou o botão do elevador, desceu, indo direto ao ponto do táxi. Então, lembrou-se que sequer despedira dos companheiros, e já imaginava o quanto eles zombavam ou xingavam – vez que mesa-de-pôquer de três não tem graça nenhuma – e mais ainda por que naquela noite ele era o parceiro ideal: perdera todas as rodadas até então.
O motorista acelerou, com um olho no trânsito e o outro no banco de trás – no fenecimento da moça – e agora, o reflexo das luzes dos postes que entrava pelos vidros laterais do carro, denunciava também o seu enorme nervosismo; suava frio: e se ela morresse ali, nos seus braços?, perguntava-se, enquanto o carro cantava os quatro pneus e logo foi bruscamente freado.
Ele desceu e apertou a campainha, insistentemente, feito um desesperado, e uma voz rouca, sonolenta, furiosa, perguntou do que se tratava, – Trata-se de vida ou morte, e caso não atender, embravecido, adiantou-se a dizer: tratar-se-á de duas mortes, seu doutor...
A porta se abriu e ele subiu a escadaria que ia dar no segundo andar levando-a nos braços, era a segunda vez – nas últimas vinte e quatro horas – que vinha àquele mesmo recinto um tanto suspeito; parecendo mais um matadouro, que uma clínica médica.
A primeira foi para um serviço fácil, fácil, dissera-lhe o doutor, coisa de minutos. Pagou a quantia combinada e a levou pra casa, com algumas recomendações – entre elas, a de muito repouso – mas desgraçado de tesão, em vez disso, ainda que recém-abortada, ela quis amor e ele não recusou.
Agora, amargava a sorte e aquele insano momento, de cumplicidade.
Os ponteiros do relógio da catedral marcavam três horas da madrugada, quando ele desceu os degraus, contando sem contar, cada um deles, pensativo, amargurado, deixando-a numa maca com um frasco de sangue correndo num dos braços e no outro, corria célere o soro. Dalí a pouco iria trabalhar.
Ela ainda agradeceu e forçou um leve sorriso – Eu vou melhorar, ao amanhecer eu telefono, e você vem me buscar, disse. Deus queira...
Só então notou não ter dinheiro para o táxi e tampouco circulava ônibus àquelas horas da madrugada, assim, subiu ruas, desceu ruas, dobrou esquinas, e todas elas exalavam a um forte odor de biotério – a uréia entranhada às calçadas – e mais à frente putas e bêbados cambaleavam abraçados ou mais frequentemente: xingavam uns aos outros.
Um cão magricelo derrubou e enfiou-se numa lata de lixo; chutou o coitado, que saiu capengante ganindo madrugada afora... O caminhão de lixo, quando não a sirene da policia, acordava os já insones moradores dos prédios vizinhos, que irritados, gritavam impropérios.
Pelos vultos e bueiros das ruas corriam os ratos de esgoto, grunhindo, levando restos de comida pros filhotes; nojo de vida, pensou!
Chegasse vivo em casa, o mundo ainda teria jeito?, perguntava-se, a cada passo em direção ao apê onde morava, de favores, com outros colegas de trabalho. O frio batia-lhe severo no pouco de alma que ainda lhe sobrava. Tremia-lhe o inteiro do corpo.
Sabe-se lá se era medo da própria morte – perambulando pelas ruas àquelas horas da noite – ou fosse medo da morte dela, seu recente caso fortuito, ou mais que isso, vergonha de si mesmo: arrependido.
Uns gays passavam por ali, rebolando, fazendo trejeitos e proferindo-lhe elogios. Olhou de esguelha – Hoje não! Mais provável, nunca mais: estou definitivamente castrado, me prometo. Não mereço melhor sorte!
Tenho lido seus contos, e apreciado com gosto.
ResponderExcluirO tempo pouco, impede-me de comentar todos, mas tb. Literacia tem uma riqueza de Autores.
Agradam-me os sabores destes vozeios , coisas das Gerais?
Abs, Valentina Latiffa
Tb adoro os contos dele, Valentina!
ResponderExcluirBjs
Belvedere