domingo, novembro 20, 2011

A mulher, como sempre, à beira do fogão, inventando alguma coisa pra janta – Deus inteira, Zé!, ela dizia, confiante. Inteirava sim, mas nunca era o bastante, pra todos.

Até que o galo roufenho cantasse novamente


Tirou do bolso o fumo e o canivete. Tinha já atrás da orelha a palha de milho, no tamanho exato do cigarro. Amassou a touceira de capim e sentou-se ali, com os olhos perdidos na imensidão dos pastos: falta muito para terminar essa empreitada, falava pra si mesmo.

Picou o fumo. O cheiro do tabaco entranhava em suas narinas, e já não tinha fumo bastante para o resto da semana. Cuspiu de lado a tristeza. Sábado pegaria um adiantamento com o patrão, faria as compras de casa, adquiriria outra lima e um pedaço de fumo; no curvo da mão um punhadinho de nada, o suficiente pro único cigarro do dia – Miséria de vida! 

Cuspiu a saliva viscosa da sede.

Enrolou o cigarro, riscou o isqueiro e puxou a primeira baforada – de satisfação, por pouco não sorriu. Pudesse guardaria toda a fumaça dentro de si, para o resto da jornada. Parte da fuligem ficava mesmo nos poucos dentes podres de sua boca.

O sol inclemente. Virou na garganta a moringa, apenas um gole, cuidando de economizar água; lá longe, muito longe no grotão, a única cacimba. Puxou a lima velha da cintura e afiou a foice. Raspou a goela, recolocou o chapéu na cabeça e levantou-se devagar, pois lhe doíam as escadeiras.

Gemeu a dor do entrave; decerto, já é prenúncio de algum reumatismo, efeito da friagem das madrugadas, pensava.

Encarou novamente o sol, devia ser dez horas da manhã e continuou a roçada, batendo a foice sem parar.

O estomago roncou. Era meio-dia – calculava à hora pela própria sombra que não podia ver; sol a pino! Abriu a marmita: arroz, abóbora, angu, e pimenta malagueta inteira, dando um colorido imaginativo à escassez nutritiva do alimento.

No sábado compraria uma cabeça de boi; faria um cozido e lamberia até os ossos, ele e a família. Engoliu a comida.

Bochechou e engoliu a água. Ressonou cinco minutos. Acordou. A empreitada é maior que eu pensava, e já é tempo deu pegar outra, dizia a si mesmo.

Novamente o cipoal. Já não tinha água e o sol ainda marcava três horas da tarde. A roupa rota remendada, encharcada de suor. As pernas da calça engorduradas do capim.
Entardecia quando chegou à cacimba e saciou-se da água fresca. Só então percebeu a cara e as orelhas inchadas das mordidas de mutucas e marimbondos. Os pés feridos de arranha-gato.

Mas isto fazia parte da lida de todos os dias; consolava-se.

Chegou em casa e os meninos vieram correndo, todos pequeninos ainda. Os acolheu: um no cangote e o outro enganchado à cintura; o terceiro corria à frente, apostando corrida com o cão magricelo; ambos, mais cambaleavam que corriam.

As galinhas voaram em direção: saber do que se tratava aquele alarido, pensando ser alguma sobra de milho, que há muito não viam.

A mulher, como sempre, à beira do fogão, inventando alguma coisa pra janta – Deus inteira, Zé!, ela dizia, confiante. Inteirava sim, mas nunca era o bastante, pra todos.

Ele rachou a lenha e trouxe pra dentro da cozinha, modo o sereno não molhar e dificultar o fogo acender, pela manhã.

– No sábado compre querosene, tá no fim, Zé! , lembrou-o novamente. A mulher era quem sabia dessas coisas.

Pegou o filho maior no colo; era uma leveza só, o coitadinho. A lamparina acesa, uma única sobre a mesa e uma única panela na trempe, pra única e rala sopa de inhame com folhas de taioba rasgadas; o inhame havia acabado.

O tutano, resto ainda do último sábado, seria pros pequenos; ele e o cãozinho roeriam os ossos que sobrassem.

As escoriações no pé lhe doíam; a mulher botou sal grosso e álcool sobre suas feridas; pela cara de amargura também ela escondia algum sofrer: uma dor de dente, uma aflição menstrual. Mais se preocupava em resolver as dificuldades da pobreza, que pensava em si mesma.

– Carece lombrigueiro pros meninos, Zé, eles estão com desarranjo.

Pedia somente o que fosse essencial. Vestia a saia e a mesma blusa pobre de sempre; o avental sujo de fogão. Um pente faltando dentes, segura parte do seu coque. O único vestido, de sábado, pendurado na parede do quarto.

– O dentista mandou voltar, pra arrancar, Zé, ela disse.
Venderia sua galinha de estimação, pras despesas. O galo roufenho cantou lá fora – decerto, já sabendo que ficaria sem galinha e temendo já o seu próprio fim.

Era madrugada, e uma fumacinha escapava pela chaminé do rancho. O café coado. Pão, mesmo, nunca havia. Seria mais um dia e uma noite, como todas as demais, até que o galo roufenho cantasse novamente.

Quem sabe alguma coisa de diferente acontecesse, quem sabe...

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