segunda-feira, julho 18, 2011

Era onde o menino mais punha seu olhar de encanto...


Saudades da roça

 

Jairo Ferreira Machado
O frango d’água flutuava no açude entre as ninféias, se confundindo com as folhas e flores dessas, como se fosse a própria flor se deslocando sobre as águas, sem se afundar; cata um inseto aqui outro acolá. Era o macho, considerando o escudo frontal vermelho intenso que aquele possuía, parecendo ser dono do pedaço; e quem sabe fosse...
Precisava somente se alimentar, banhar-se e voar até os lábaros mais altos do tabual, onde permaneciam alguns minutos, tricoteando as penas, secando-as uma a uma, em aparente despreocupação. Antes, deixava no lago um ninho d’água – circunferências ondulantes – cujos contornos feitos de pequenas vagas logo se extinguiam serenos, nas margens no açude. 
Vez e outra o frango d’água vozeava qualquer coisa e sumia entre o tabual, para voltar minutos depois, sabe-se lá de onde? Inconfidente, mas aparentemente faminto, cata aqui cata acolá. Feito que na sua ausência a natureza já recompusesse o seu alimento, mais usualmente os insetos que o vento ali derrubava -, vindos esses de inevitáveis descuidos de asas; era o que lhe parecia.
O frango d’água comia, comia, banhava-se e voava novamente, empoleirando-se galante sobre o cume das taboas. Outra vez vozeava um ki-ki, ki-ki e se misturava às moitas ao redor, em franco mistério.
Repetia diversas vezes, o mesmo ritual.
O que o menino deduzia era que o frango se recolhia para regurgitar o alimento no papo da fêmea, aninhada em algum lugar da vegetação, que cobria o açude; ainda que pensasse assim, não tinha tanta certeza disso. 
O reservatório d’água tinha lá seus enigmas e personagens, onde o menino passava seus melhores momentos, vivendo ali um manancial de sonhos e vida; depois de uns tempos, já conhecia cada canto e centímetro do lugar.
Entardecia, e era a vez de chegarem às muitas marrequinhas da lagoa. Essas vinham em revoadas, às penas marrons rajadas entremeando a outras alvas. Tinham os olhos atentos e bicos foscos escuros – cuec, cuec, cuec. Desenvoltas planavam no ar, antes de espalmarem as patinhas de pouso, com as quais faziam momentâneos sulcos na superfície do açude. Cuidando, naturalmente, de manterem bem abertas às asas, para melhor aquaplanarem.
Os pescoços sempre erguidos – saberem se não estavam pousando diretamente na boca de algum espreito jacaré; um açude sempre trás em si muitos mistérios. O menino permanecia ali, entre sonhos e entretenimentos, o seu mais sublime devaneio de criança. 
Não demoravam e chegavam os irerês, aos pares, os pescoços longos como se as cabeças precisassem arrastar com imenso esforço seus volumosos troncos através do imenso céu anil; davam meia volta sobre a lagoa antes de lançarem as patas marrons escuras, bem espalmadas, amenizando o impacto da descida.
Diferentemente das marrecas esses faziam um rasgo maior na epiderme das águas, chuuááá..., e paravam em seguida, igualmente desconfiados de algum predador por ali. As cabeças adornadas em véu branco, daí alguns denominarem também viuvinhas, os bicos possantes, pardacentos, esverdeados, reluzentes, conforme a incidência do sol da tarde refletindo lá neles.
Sobre o limo formado do capim colchão com a superfície barrenta das águas, passeavam plumagens negras, manto castanho/grená, as lindas jaçanãs; que eram dois, se fazendo acompanhar dos filhinhos, esses mais que minúsculos pintinhos, trançando sob as pernaltas dos pais, dos quais ganhavam petiscos; uma migalhazinha de nada, catada ali mesmo das folhas das ninféias. 
Era onde o menino mais punha seu olhar de encanto.
Melhor observasse, via o capim colchão fazendo ondinhas, como se ventassem lá ínfimas brisas, o que seriam os preás de pelagem cinzenta escura vagando pelas trilhas, decerto, brincando ou se copulando por ali; até podia ouvir-lhes os grunhidos, os gozos; mais os imaginando que os ouvindo ou vendo de fato; porquinhos da índia, nos Gerais de Minas, ali pelas bandas de Recreio.
Ao entardecer também cantavam lá no fundo as saracuras. Um voo, um saracoteio, e despreocupadamente, um alisar de penas, pousadas sobre as cambutas que vergavam seus galhos para o interior da lagoa. Senão, vinham se aproximando com seus bicos verdes amarelecidos e as pernas longas coloridas de carne, os pescoços deslumbrantes cianóticos e o dorso em verdolengas penas, iridescentes arco-íris refletindo ao sol da tarde. O peito ferruginoso e os olhos de fogo.
No mais, cotós de nascença. Vinham entre soluços, sussurros e piados - cata uma minhoca aqui, outra acolá.
Anoitecia e era à vez das rãs e dos sapos pronunciarem um coaxar uníssono, em sinfonia, enchendo a lagoa de vida; como se ao escurecer o brejo se revitalizasse em fanfarrices e serestas, as mais destoantes; entre os quais o sapo boi, que no íntimo, punha medo ao menino – seriam monstros ressurgidos das profundezas das águas?
Na exata hora em que voavam dali as narcejas, agora brincalhonas, com seus arroubos espetaculosos nos céus da noite, impondo medo ao menino insone.
Rasantes, senão nas alturas, vagalumeando, bailavam os vaga-lumes, uma vez olhos de duendes, outras vezes olhos da gente. Longe na matinha, os crocitos da coruja, por certo, na visão alvissareira de algum camundongo ou alarmada com bicho estranho passando por ali. Próximo, na extensão da estrada, piava o bacurau, ou fosse curiango, para outros. 
O menino voltava novamente os ouvidos para a lagoa, na desconfiança de um lamento demorado de rã, em boca de serpente faminta. Tibum... Era um arremesso de água, uma traíra na pega de um lambari. E as vagas se formando, refletindo ali a magia de uma constelação estrelar – o Caminho de Santiago no céu, estava bem ali, no interior das águas do açude.
Na relva, o estridulo de grilos e de outros afins. No mais, a lua; de todas elas, a mais proeminente e viva: a lua cheia. 

O menino ouvia, via, sentia o cheiro, degustava e tocava com as próprias mãos, a natureza sadia.
E era feliz, e não sabia.   

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