Conversa pra boi dormir
Ele descia dos altos dos morros tocando a vaca; a bruaca era meio adoentada das patas, razão porque se recusava a descer lá das lonjuras, sem o mando da sede – amanhecia por lá! O bezerro berrando no curral.
O pai mandava buscar.
Vinha na mansidão, já que bater na coitada, não adiantava – a dita não apressava a toada, tinha mesmo dificuldades de pisar em torrões, nos tocos, pois os gabarros entre-lhe as unhas pareciam doer; doer de vaca lacrimejar os olhos; só não falava, porque vaca não fala – era o que ele pensava.
Mas o menino falava, reclamava.
- Desgraçada de vaca, porque vem pastar tão longe, sabendo que não se agüenta...
Disse, por dizer, pra se desabafar da roupa molhada de orvalho, do frio da madrugada, do sereno, tanto de não enxergar um metro à frente. E assim feito à vaca, ele soltava fumaça pelas ventas.
- Venho aonde o capim é mais macio. Já não tenho dentes tão bons, como antes., a vaca disse.
Houve um minuto de estupefação e reticências, o menino achando que nada tinha ouvido: era coisa de sua imaginação. De sua mente ainda mal acordada. Amanhecia.
- Vaca desgraçada, você falou alguma coisa?
- Na verdade, só me expliquei...
O menino recuou um trecho, quase caiu sentado. Tinha os olhos mais arregalados que ferrabrás perante assombração. O coração batia-lhe na goela. Perdeu a voz.
- E vamos ser sinceros, continuou a vaca, aprendi a falar com você mesmo, sempre reclamando atrás de mim. E me tocando o pau. Agora, igualmente gabarroso, com os dedos do pé cheios de batata de bicho, é que você vem devagar também; dificultoso, igual a mim.
Passou-se uma eternidade em alguns segundos, até que o menino respondeu.
- Vaca desgraçada, você incorporou o satanás, só pra me fazer sentir medo? Mas, vai vê, vou arrancar esse coisa-ruim da sua cacunda; e deu-lhe bordoadas. A vaca berrou, ou melhor, falou...
- Vai se arrepender moleque! Vou contar tudo pro seu pai.
Aí a coisa ficaria séria. Logo retrocedeu, desculpou-se - era um assunto pra não se alardear, vaca falando, Deus me livre! Concluiu.
- Já que falas, sua bruaca, e pelo visto entende bem os problemas dessa vida, vamos colaborar, pastando mais perto. Assim, eu não precisarei acordar tão cedo.
- Mas tem aí um detalhe, se não pasto à vontade, não há leite suficiente, e já ouvi uma conversa do seu pai, que já tá chegando à hora deu ir pro açougue; falava com o Zezé Brandão. E o desgraçadinho do meu bezerro, agora já de cabeçorra e chifres, vive socando as veias da minha barriga, pra eu descer mais leite; como posso se já tenho pouco?
- Anda bruaca, não precisa parar pra falar. O tempo urge...
- Urge não, seu burro, muge.
- Não estou falando de berro de vaca, estou falando de tempo: o meu tempo passa, o seu tempo passa. Daqui a pouco eu não estou mais aqui, e você já terá ido pro açougue.
- O quê, você vai embora?
- Talvez!... Já estou cansado de tocar vaca, buscar bezerros no pasto, de roçar pastos, de acordar cedo...
- Quer saber da verdade? Também estou cansada de dar leite; e ainda ser mal agradecida. Mal, mal ter um salzinho no coxo, uma vez por semana. E meus gabarros estão cada vez piores.
O menino concordou.
- Estou enjoado também de pegar bicho de pé, de andar descalço, de pisar em espinhos, de levar estrepadas; e nunca ter dinheiro pra nada. Ainda ontem precisei entrar num sapezal, para encontrá-la, sua bruaca! Nisso, ao menos você podia evitar...
- Estava muito frio e o sapezal é mais quentinho à noite, não foi por maldade, acredite! Arrematou a vaca.
- Já estamos chegando, sua bruaca. Vamos parar com essa conversa pra boi dormir. Amanhã a gente continua. Mas vê se amanhece mais perto do curral, desta vez...
O amanhã não existiu.
E tampouco houve esse diálogo; infelizmente.
Estou aqui rindo..... . Valeu!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluirAbs
Belvedere