domingo, setembro 11, 2011

um pensamento, além córregos, além rios, além montes – aguarde-me, também estou indo.

Perfume de açucena



A açucena exalava distante sua singular fragrância. Podia-se senti-la mais intensa à noite, aproximando-se do açucenal. No meio das plantas crescera solitário e único um pé de cambota-brava – árvore aonde os anus vinham aninhar-se da solidão da noite. 
Em noite enluarada, o branco das flores se ressaltava aos olhos dos transeuntes. De um lado havia um morro forrado de capim gordura, onde pastavam os bezerros e cantavam em dia de cio as seriemas; que era um canto gargalhado comprido e triste.
Margeando a estrada fluía do chão – mais precisamente de entre um barro branco-grafite – uma mina d‘água, branquinha, fresquinha, de dar água na boca. O gosto singular da água de mina. Que os transeuntes tomavam no curvo da mão ou mesmo numa folha de inhame, colhida próximo do local.
Outros passantes se deitavam ao chão, feitos lagartos, e bebiam direto de dentro da manilha – recipiente redondo, assentado na vertical do barro – modo a água fluir límpida do fundo da terra e a gosto de quem dela bebesse.
Marcelino fizera da fonte o seu lugar de sacio e sonhos.
Sentado ali, ficava olhando a água correr. Ia junto com aquele murmurinho de nada, inacabável. Depois a água ganhava o estreito córrego que acrescido a outros formava um rego maior. E mais à frente se transformava em açude, ribeirão, depois seguia em frente, atravessando represas, várzeas e arrozais.
Marcelino sabia que aquela água chegaria a algum rio onde seria captada, tratada e utilizada por cidadãos. E muito mais tarde, seguiria novamente à direção do mar. E assim, aquele filete d’água já não seria mais um córrego e sim um caminho, um sonho...
Podia-se mandar dali uma mensagem, um recado, um pensamento, através da inolvidável memória das águas – que essa o levaria ao destino desejado. Ainda que fosse muito distante dali, os outros mundos, ele raciocinava...
Próximo à mina havia uma pequena casinha, de quintal igualmente acanhado – somente algumas touceiras de bananeiras e um solitário pé de mexerica ao redor. Além de uma grande pedra que escapara de uma montanha, perto dali.
No terreiro, balançava ao vento um varal de roupas, multicoloridas, entre essas, a calcinha dela, imaginava, com os olhos abrilhantados – que o brilho tanto fosse reflexo do sol tocando a superfície límpida das águas da mina, ou a luz dos olhos dela – olhando da janela, assim como que meio-escondida, como se não devesse olhar...
Os frangos d’água piavam lá no meio das taboas, um pio de alerta; ou fosse mesmo pio à toa. Multicoloridos, alguns alçavam vôo, reluzindo as asas, como se banhassem ao sol.
O murmurinho das águas da mina ressoava uníssono com o seu coração, que agora batia descompassado. Outras vezes, disparava – bastava imaginar que o vulto na janela fosse ela, interessada também, olhando cá pro seu lado.
Esperaria o tempo que fosse necessário, por aquele olhar. No mais, ao redor, tudo transcorria sem pressa – como tudo na roça acontece devagar. Ou mesmo, não acontece...
Vez em quando cantava uma saracura. Não podia vê-la, só imaginá-la enfiada em meio ao arrozal ou empoleirada no pé da cambota-brava ou mesmo catando minhocas à beira do rego. Senão, se banhando nas águas que escorriam límpidas da mina. 
A saracura, que era pouco menos colorida que o frango d’água, mas por sua vez, mais bonita que o bilro – que esse era um pássaro marrom, de peito claro, e que cantava, alegre, pousado nos arbustos do brejo, aonde habitualmente fazia o seu ninho.
Em certos momentos, se fazia o mais puro silencio. E pudesse ele ouvir o silencio, ouvia os preás, que ora corriam alegres – preás, sempre correm –, nos labirintos formados pela leveza do capim colchão; decerto, se acasalando por lá.
Mais vezes, ouvia as batidas do próprio coração, esperando ansioso pelo surgimento de um rosto, naquela janela.
O céu azul límpido, como todo céu de Minas Gerais. Raras nuvens brancas. Lá no fundo, o murmurinho sonolento das águas da mina. Marcelino saciou-se mais uma vez a sede daquele fim de manhã, antes de retornar ao eito, ao trabalho de praxe.
Serviu-se da foice.
Enquanto roçava, não percebia o silencio. Só um pouquinho – entre a batida da foice no matagal e o tempo dessa cortar o espaço e ceifar novamente – meio-palmo à frente de onde ele roçava. Nesse instante aproveitava e espiava mais uma vez, os olhos de vieses, compridos, no vão da janela.
Quem dera vencesse a escuridão que vinha de dentro do quarto, e vê-la, aquela tez morena, toda nua para si. Enquanto o sol alumiava o cintilar da foice, que refletia um luzidio relâmpago – como se fossem, os olhos de sua amada.
Era apenas o alumio da foice, apenas o seu imaginar...
O suor corria-lhe no rosto e eventualmente se misturava as suas lagrimas – a sua menina-moça partiria em breve. Como mina d’água que flui do chão, forma um rego, e esse se acresce ribeirão, que mais tarde, será um rio. E esse rio vai embora, vai dar numa cidade, num chuveiro, no mar – era só uma questão de tempo.   
A vida também é assim, um passo à frente...
Porém, um passo a mais, podia ser distante demais. A casinha lá fincada ao chão. Não adiantava mais continuar ali. Logo, logo não veria mais a janela. E nem sua bela menina-moça. Assim, batia a foice no mesmo lugar, olhava, trabalhava, olhava, sem adiantar-se.
Os anus chegavam ao montes – pretos e brancos –, e de bicos robustos. E se escondiam na árvore poleiro de anu, próxima dali; despreocupadamente vadios. Bastavam-lhes as esperanças, grilos, que a foice de Marcelino os fazia desentocar do matagal, e que num vôo único, certeiro, os anus já enchiam os seus papos. 
Num certo dia a açucena, caprichosamente, recolheu o seu perfume habitual do entardecer; caiu do galho. No mato, o canto da acauã, como agouro – o gavião parecia anunciar a prematura morte dela, no seu coração. Ela se foi...
Seus olhos de açude, de mar.
E aquela casinha se fez pequena, vazia. A janela, por onde mergulhava o seu olhar, buscando os olhos dela, se fechara, como que em definitivo. O tempo parou. O varal de roupas permaneceu lá, vazio, o vento o soprava, sem sequer arredá-lo do lugar.
Marcelino, agora, descansava os olhos na mina. E tudo que ouvia era um profundo silencio; ainda que houvesse lá, as águas escoando córrego afora. E ainda havia por ali alguns anus voando, como se também estivessem indo, pra sempre. 
O olhar ao redor do que antes era pura vida. Como se não houvesse mais saracuras, nem frangos d’água, com seus efêmeros piados. E tampouco houvesse preás, correndo pelas várzeas. E não houvesse mais as várzeas, os arrozais...
Que as águas dos regos pararam: não mais corriam. Como parado via-se o seu coração, o seu sangue, a sua pulsação - como se morto, estivesse. E tampouco cantavam no alto dos morros, as seriemas.
Póstuma casinha.
Somente lagartixas, camaleões, passeando por suas paredes, a cata de algum alimento – que somente moscas haviam por lá. Como tristes são todas as casinhas abandonadas, na roça.  A janela, agora, fechada, para sempre. 
Marcelino também se foi. 
Como se todas as coisas por ali não mais fizessem sentido. Nesse dia a acauã cantou centena de vezes, lá na matinha. Quem sabe um dia o gavião partisse também...
         Mas antes, Marcelino bebeu da água da cacimba, andou pelas várzeas, pelos regos, e se mergulhou por inteiro no açude, como quisesse mandar uma mensagem, um pensamento, além córregos, além rios, além montes – aguarde-me, também estou indo.

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