domingo, setembro 18, 2011

A viúva


Era quase um casebre, não fosse o capricho de algumas flores, rosas, dálias e tinhorões enfeitando ao redor. Penduradas às paredes, por fora, alguns coités plantados de onze-horas – flores que se abrem exatas, no horário do almoço. Algumas reses pastam ao redor. 
Boiadeiro, montado num cavalo alazão, indo de uma estância pra outra, ele parou ali modo pedir um pouco d’água. E ela olhou da janela, venturosa, sorrindo-lhe a face viúva. As onze-horas anunciavam à hora do almoço.
– Apeie-se! Ela disse. Apeou.
 Morava sozinha à beira da estrada. De manhã tirava um leitinho, fazia queijos e compotas, que vendia na cidade, nos dias de sábado. No mais, vivia de pastorear algumas cabras, separar bezerros das vacas e arrumar os ninhos das galinhas. Afora isso, cuidava da casa, do quintal e do curral. No mais, olhava o tempo passar – o sanhaço indo e voltando ao mamoeiro.
Voltava do curral, enfiava-se debaixo de uma ducha fria que descia da serra, ensaboava o cheiro das vacas, aproveitando-se em apaziguar os hormônios que vez em quando ainda lhe incomodavam.
Assim desde o precoce falecimento do esposo. Ainda que estivesse no prenúncio do climatério, o que incomodava mesmo era o calor da precisão de um homem; que o seu não morrera de velho, morrera daquilo, diziam. 
 Àquelas horas, as panelas estavam na trempe, no refogado do almoço. As onze-horas lá, todas floridas, dando o ar da beleza – é de bom parecer que haja sempre onze-horas floridas ao redor de uma casa; inda que seja essa uma casa de viúva. O terreiro varrido de véspera, só algumas folhas caídas ao chão, obra do vento da noite.
 Uma grande e antiga mangueira sombreava parte do telhado da casa e do quintal. O cãozinho, franzino, latiu. Mas logo parou – decerto, economizando forças – considerando o descabimento da magreza: assim, pobrezinho, feinho que só um tico... 
 Ele apeou, sem soltar as rédeas do cavalo.
Ainda na janela, ela disse
– Amarre aí o seu cavalo, moço. Descanse um pouco o coitado, que está banhado de suor.
Tinha ainda a toalha enrolada na cabeça, do recente banho. E se recolheu pra dentro da cozinha, para buscar água.
 Reapareceu depois na porta da sala, trazendo a jarra e a caneca. Não o recebeu pela porta da cozinha, teve o cuidado de abrir-lhe a porta principal, que rangeu a fechadura – já de há muito enferrujada pela falta de uso. Sorria faceira. Sorria-lhe a alma. Sorria-lhe o corpo sofrido de roça, mas revigorado, animoso, e recém-ensaboado de sabonete. 
Ele olhou sem muito se preocupar, deixou a timidez de lado e descansou lá os olhos nos entresseios dela; a blusa meio desabotoada, por descuido ou precisão, onde escorria uma aguinha vinda dos seus cabelos ainda molhados.
 Animada com o olhar dele, nem se deu ao cuidado de cobrir o decote com uma das mãos – como seria de praxe perante um estranho – e com a outra, oferecia-lhe a caneca cheia de água da talha. Disse-lhe
– Está fresquinha, colhida na mina, agora de manhã.
Ele agradeceu. Agora reparava nos olhos dela, que brilhavam como o sol daquela manhã. Era bonito olhar aquele rosto faceiro queimado de sol.  
 O cavalo lá parado, sob a sombra, batendo o vazio do cansaço. Um sanhaço veio comer do mamão maduro, o pé nascido ali rente à janela da sala – podia colher a fruta com a mão, fosse do seu interesse, mas deixava amadurecer pro sanhaço. Ambos olharam, como que atraídos, num repente, pelo singular cinza-azulado do pássaro.
– É a distração das minhas tardes, quando me sento aí, nesse banco, para pensar na vida.
 Naquele momento, ela lhe pareceu triste.
– Além de comer do meu mamão, faz ninho na minha mangueira e dorme no meu pé de laranja. Está sempre por aí... , completou, referindo-se ao oportunismo do pássaro.
 O boiadeiro apreciou o banco com os olhos... e se sentou.
Precisava dar tempo a si mesmo. Talvez devesse permanecer ali mais alguns minutos, solidarizar-se com aquele imenso isolamento, dando-lhe o prazer do desabafo. Além do que, vinha há muito descorçoado, cavalgando sozinho pelo caminho, com o propósito de cambiar gado de outras bandas do rio.
O sanhaço cantou alto, talvez agradecido do alimento, e depois voou; foi-se, aos poucos, confundindo-se à nuança celestial.   
 Ela sentou-se na outra ponta do banco, puxou o rodado da saia, modo deixar transparecer uma pontinha de coxa; a que se sobrepunha à de baixo; de interesse, deixava a saia lhe marcar o contorno das pernas. Não estava de todo morta, dizia a si mesma, tentando dizer a ele também.
 O resto ele imaginava – nem nova nem tão avelhantada!
 De repente ela lembrou-se da panela no fogo – quando o cheiro do torresmo alcançava o terreiro – e rápido correu para socorrer a comida, quando ele também ameaçou continuar a viagem, e ela pediu que não fosse. Não ainda! Que já aprontava o almoço num minutinho...
Conversaram. Almoçaram juntos. Riram juntos. Mais tarde ela mexia o leite da lata, acelerando o ponto da coalhada, modo fazer o queijo, de uso habitual. Minutos depois espremia a coalhada na fôrma do queijo. Ele ali, espiando as mãos dela, espiando toda ela, num imaginar lúbrico – nem nova nem avelhantada.
 Ela inclinava pra frente o tronco modo pegar a coalhada dentro da lata que estava a nível do chão da cozinha, deixando transparecer quase o todo dos seios. Erguia-se novamente, abaixava-se, erguia-se – perfeitamente desenvolta – que ele podia sentir-lhe as curvas, as suas carnes firmes, ainda acaloradas, pegáveis, acariciáveis.
Comia-a com os olhos.
 Ela queria se amostrar? Já não tinha dúvidas. Logo terminou de fazer o queijo e colocou a água do café no fogo. O fogo dele se acendendo. Ela percebendo – moço ainda, e com esse olhar de contemplação, até prova contrária: condiziam-se!
 Naquele ínterim, o sanhaço voltou ali varias vezes, modo comer do mamão.  E toda vez cantava. O cavalo lá descansando da lida. No terreiro, agora, dezenas de folhas caídas. O cãozinho dormia no cavado do chão que ele próprio cavoucara.
 Ela partiu o queijo recém-pronto e ambos o saborearam maduro ainda, com café coado na hora. Agora sim, ele continuaria a viagem: pegou o chapéu pra sair, mas ela pediu que não fosse. Não ainda...
 Sem mais demoras, ele ergueu-se do banco e a enlaçou pela cintura, puxando-a para si. E foi um beijo longo e augusto. E depois uma tarde inteira, que reviraram os lençóis da cama, há muito ali, arrumadinhos – a espera, sabe-se lá de quem...
Os dois travesseiros também lá, como póstumos – a maioria das vezes ela dormia no sofá – nem carecia cama, para um corpo amuado, sem a companhia masculina; sem o seu cobertor de orelhas.
 Exaustos, foram à cozinha, para o lanche da tarde.
Das frestas das paredes, de cima dos caibros, de entre as telhas, agora vinham lagartixas, camaleões, à caça dos mosquitos parados ao redor do picumã da cozinha.
 Ela ofereceu-lhe um pedaço de rapadura com mais uma porção de queijo, e melado, revigorantes puro, para mantê-lo atiçado.
 Tomou-o pela mão e o levou pra cama. Veio o entardecer e o escurecer. Viam através da janela, entre um e outro enrosco, a escuridão da noite e as estrelas no céu. O cavalo já desarreado, pastando lá fora. O sanhaço, decerto, dormia no pé da laranjeira. E tudo era um profundo silêncio.
Ela tomou um fôlego e passou batom.  E novamente lhe oferecia os lábios – para melhor ele sentir-lhe o gosto da boca sedenta – e ele a beijava, como se não pudesse parar. Ela tampouco queria que ele parasse, precisava daquele alento de vida.
 Depois, tomou outra ducha fria, botou a camisola de seda, há muito guardada na cômoda, e voltou a deitar-se. Também ele veio do banho, nu, e tudo começou novamente. Até que se tombaram flácidos e exaustos na cama. E dormiram. Ela desmaiou.
 Ele despertou de madrugada, antes do primeiro canto do sanhaço, arriou o cavalo e partiu. O cãozinho nem deu o sinal; ressonava. Os bezerros berravam a fome, quando ela despertou, assustada. O sol já alto; estava sozinha no sofá.
E nada daquilo havia acontecido.
 Como sempre, mais uma vez, o coração lhe batia triste no peito.
  Passou a mão no balde e foi pra lida. Mas o sonho não lhe saía da cabeça – quem sabe um dia desse, uma noite dessa, aquele cavaleiro voltasse, em carne e osso, e nunca mais fosse embora.
 Voltou do curral, tomou uma ducha fria, pôs lenha no fogão, pegou do regador e regou as onze-horas. E como sempre, almoçou sozinha. Depois, sentou-se no banco do terreiro, esperando...  O sanhaço vinha e voltava.
Mas antes, cantava pra ela. Todos os dias.

2 comentários:

  1. Lindo,Jairo, adorei! Parece que via aquelas casinhas assim mesmo, das nossas Minas Gerais...E que sensibilidade! Parabéns!

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  2. MUito bom mesmo. As letras do Jairo tb me encantam.
    Belvedere

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