domingo, outubro 16, 2011

Fujã pra onde? Desde que sabíamos, ali era caminho desencontrado.


Uma rês fujã.



Uma rês fujã, escreveu assim João Guimarães Rosa. E tratando-se de João Guimarães Rosa, não se discute: assina embaixo e alardeia. Vínhamos pelo vão de dois barrancos, eu e meu irmão, descendo o estradão, com o ruído daquele tropel e o sacolejo de úbere indo à frente – era a tal vaca. A nossa montaria assim, já amuada da afobação.
Cercá-la era impossível – estava a bruaca com o corisco nos cascos.
Desembestara-se da manada, com idéias próprias, descabidas. Fujã pra onde? Desde que sabíamos, ali era caminho desencontrado. E nós atrás, montado em dois cavalos trotões, os fiofós já ardendo dos mil pulos, pinotes.
Meu irmão mais novo, na rabeira, choramingava a sorte. Lembro, em tempo, que o anoitecer chegava e a vaca tinha os cornos apontados lá pros cafundós, em rumo arriscado: lugar de assombração.
A rês mesma era uma abantesma da breca: preta até no branco dos olhos e branca somente nas patas. Cravei a espora no sovaco do trotão - Ou nóis cerca ela, ou tamos fudidos, falei, sem esperar pelo irmão, que ficara pra trás e por certo, todo cagado de medo. 
No galope, por pouco não passei pela bruaca, que de repente desapareceu; escafedeu-se de toda na escuridão. Meu cavalo, pangaré, passarinhou. Meu fiofó trancou-se, que nem pensamento passava. E fiofó pensa? Se muito obedece. Pois então me veio uma dor de barriga e foi um escorrimento dos infernos; João Guimarães Rosa talvez escrevesse escurrideira. Mas ele era João Guimarães Rosa.
E agora, a rês fujã dele, ou minha, sei lá, assombrara-se de vez. Nem sinal de rês. Eu com cara de desnorteado, inerme na escuridão, e o cavalo de olhos esbugalhados.
Naquele momento meu irmão chegava, aos trancos e barrancos, dizendo que a rês tinha voltado. Ele topara com ela, logo ali, na curva do caminho. Mas viu apenas as quatro patas brancas dela, que ia desembalada, sem fazer alvoroço no chão; num avoamento só - vamos dizer que João Guimarães Rosa, escrevesse assim.
Logo, riscamos a espora nos trotões que foi uma só peidação, morro acima.  Meu irmão gritava que eu o esperasse. Mas confesso, não há quem espere alguém numa noite escura no meio de um cafundó mal assombrado.
O meu trotão agora voava, ainda que a assombração ou o que fosse aquilo, estivesse à dianteira. Noite de breu.
Mais adiante, já perto da vaquejada, alcancei-a. A rês fujã estava lá sentada à beira do caminho. Agora vão dizer que passei dos limites, endoidei, que vaca não senta! Disso eu sabia, até aquele momento. E a danada, esbaforida, balançou os cornos pro meu lado.
Tinha a cara pálida, como estivesse vendo também alguma assombração vinda atrás de mim. Empaquei o cavalo na rédea, modo esperar o irmão chegar e tirar com ele algum conselho – a vaca está mesmo sentada ou aquilo é alguma coisa doutro mundo?  Os olhos do irmão eram dois coités, saltando pra fora da cara. E o cavalo dele, feito o meu, tremulavam nas patas.
O tempo passando.
Mas que aquela rês fujã estava mais para uma aparição, isto estava. Foi aí que surgiu na estrada, como num encanto, montado em seu cavalo baio, o João Guimarães Rosa. E falou alguma coisa para a tal fujã.
E essa saiu solevando as ancas, os cornos alevantados, num passo apressado, cantando os cascos no chão. João Guimarães Rosa ia atrás, assoviando; cheio de idéias na cabeça: essa rês é das minhas. O lugar era ali, pras bandas de Minas Gerais, Cordisburgo.
Lá pelos idos de 1967.    

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