Sapiência de boi
Tão depressa a viu, alegrou-se de alma e coração; bonita e faceira passava por ali aquele encanto de moça, logo, adiou o exercício da confecção do canzil – boi nenhum tem pressa de canga – concluiu de imediato.
Ainda mais aquele, o qual negaceou, rangeu os cascos nos paralelepípedos, chifrou o ar, quebrou o canzil, sabe-se lá porque, e o obrigou a servir-se das ferramentas e fazer outra peça, de imediato, para a necessária troca – em plena rua.
Agora, agradecia ao boi que momentos antes, ele xingara, em vista da inesperada estripulia. E deitou o olhar no contornado das pernas da moça, malicioso, conjeturando lá as mil faces da ledice; exultava-se – aquela era a novilha mais linda do mundo.
O boi ali – a fácies bovina de tranqüilidade majestosa – mas lá no coração o coitado devia de ter algum ressentimento enrustido, de raiva, desde que, moçoilo ainda, alguém o esmagara os bagos – a golpe de um cepo – e desde então, se tornara, definitivamente, e para sempre, apenas boi carreiro.
Não à toa quebrara o artefato da canga, bem no meio da rua, próximo à praça, onde se desfilava toda a boniteza que a roça carecia de ter; presentemente, pensando no não muito estimado o seu carreiro, ali, solteiro, e ainda inteiro dos bagos.
Vestido azul-claro transparente – mal o tecido alcançava-lhe os meados das coxas esbeltas e fatídicas –, a moça o mirou, sorriu-lhe, e o mirou novamente, depois seguiu em frente, solevando pra lá, pra cá, as suas, dela, lindas e suculentas alcatras.
Ele crivou os olhos naquela abundância de formosura, dizendo-se: ah... minha de toda e sempre, serás... Encantado!
Só por esse detalhe, já perdoara o boi – passara momentos de constrangimento de carreiro, o boi fazendo das suas traquinices, em plena cidade – desgraçado de boi, falou pra si, naquele momento. E já agora mudou a opinião – esse boi sabe das coisas! – concluía, animado.
A moça se foi calçada afora, mas decerto, voltaria, num instante. Senão, seguiria o ar perfumoso que ela deixava pelo caminho – feito cão em meados de agosto, no faro do cio fêmea; aprendera com o Peri, comedor de cadelas.
Cuidava, no entanto, de não apressar os finalmentes do canzil, alisava vagaroso o madeiro, nos entretenimentos, esperançoso, o povaréu indo e voltando, numa andança sem cabimento.
Queria mesmo era botar novamente os olhos naquela novilha; e talvez nunca mais voltasse pras lidas do campo – cidade é que era a mais salutar maravilha...
Logo veio o delegado, na indagação, porque ele demorava tanto? Ali não era parada de carro de boi, tocasse em frente, ou iria pro xilindró – fosse terminar aquele serviço de formão, de facão, de enxó, de canivete, de verruma, de artesão, longe da cidade, determinou o homem da lei.
Ele concordou. Em apurado zelo, arrematou o serviço, atrelou o boi à canga, chamou o candeeiro, autorizou: candie menino, por esse mundão de gerais afora. Que esse delegado, ele querendo ou não querendo, eu vou mesmo é ficar por aqui.
Dê lembranças ao patrão, diga, que só voltarei peado a essa novilha, de coração e dedos aliançados, senão, nunca mais.
Antes, espalmou a mão nas ancas do boi – obrigado manhoso!... O boi piscou-lhe os olhos, não lacrimejou – o caso, não carecia choradeira – por que aquilo era bom: não teria mais no seu traseiro, como de praxe: o ferrôo do carreiro.
O carro de boi dobrou a esquina, o candeeiro indo à dianteira.
Momento seguinte ele emparelhou-se à moça – essa, já vinda das compras, sorridente ao vê-lo – pegou o bonde com ela, embriagou-se do perfume dela, quebrou o canzil – cheiro de boi, nunca mais!
E ela por sua vez, novilha de toda necessitada, o prendeu à canga e o enlaçou de pernas e coração, mil vezes amorosa, e assaz, no intimo, agradecida – obrigado boi manhoso!...
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